r e s p i r a
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A mão escrevia sem parar,
Entre letras e palavras, as frases vinham para ela e fluíam líquidas sob o papel amarelado pelo tempo. Revirava os olhos pra cima buscando encontrar o pensamento que dançava em sua mente. Ela precisava falar.
Escrevia tão depressa que era como se o lápis tivesse vida própria e conseguisse traduzir exatamente tudo o que havia dentro dela.
Ouvia sussurros baixinhos em seus ouvidos que relembravam suas histórias: eram elas, as suas guardiãs.
Sentada à escrivaninha de madeira, via-se projetar nas paredes da sala todos os marcos da sua vida. A primeira vez que se sentiu corajosa, a primeira vez que se arriscou, que brigou, aquela em que caiu e se machucou, a que superou o medo. Quando se deu conta que não usava mais as rodinhas da bicicleta. A que botou os meninos pra correr. Aquela em que se apaixonou. Também a que chorou por amor pela primeira, terceira e décima vez. Aquela que vibrava e pulava com seu nome na lista de aprovação. Aquela que precisou dizer adeus. Aquela que dançou com a cerveja na mão, fazendo dedinho pra cima. Aquela que não lembrava nada da noite anterior.
Lembrou quando chegava tarde em casa e ainda encontrava tempo para estudar. Quando aprendeu finalmente a fazer arroz. Aquela que chorou a perda de alguém especial. Também aquela que chorou a chegada de alguém especial. A que gargalhou tanto com a melhor amiga que a barriga doeu. A que fez amor a noite toda. E as que duraram nem 5 minutos. A vez que adotou seu bichinho de estimação. A que conquistou aquilo que planejou tanto. A que perdeu o emprego. E a que encontrou uma oportunidade melhor pouco depois. A que enxugou as lágrimas e se reergueu para continuar. A que mudou de ideia. A que viajou pra longe e se sentiu livre. O dia que disse ‘sim’. E outros tantos que disse ‘não’. Quando a pegou em seus braços pela primeira vez. Quando se deu conta que não queria ir a lugar nenhum. Aquela tarde lendo livro esparramada no sofá enquanto a chuva caia lá fora. Aquela que sentiu que se perdeu de si e quis desistir. Aquela que abraçou seu corpo e se perdoou. Aquela que se olhou no espelho e se viu mais forte do que nunca. Aquela em que finalmente se apaixonou por si.
Viu a sua história como poesia, como arte.
E elas, as ancestrais, presentes em cada um dos momentos, fazendo a proteção e o amparo daquela menina. Ela nunca esteve só.
Ela era mais que o sonho, mais que a realização, ela era a certeza.
A intuição.
Se viu no meio da sala e ao seu redor, em círculo e de mãos dadas, cada uma das mulheres que faziam parte da sua história, cada uma era um pouco ela mesma, dançavam e cantavam celebrando mais um marco pra se registrar.
No topo da sua cabeça foi coroada uma flor, para que jamais esquecesse que ela era capaz de desabrochar por qualquer terra onde quer que seus pés andassem.
Voltou-se ao papel e descobriu que em seu verso havia uma pequena carta,
que ela mesma havia escrito para si quando criança em um diário antigo.
A letra ainda imatura revelava a pureza daquela menina.
E chorou ao perceber que um dia sonhara
exatamente com o que ela havia se tornado.
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Com amor,
Seu Tempo